29 de nov. de 2012

IDENTIDADE



Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

Miguel Torga

28 de nov. de 2012

SONETO DO ANJO



Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando…
Negros olhos as pálpebras abrindo…
Formas nuas no leito resvalando…

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Álvares de Azevedo

25 de nov. de 2012

VESPERAL


Hora de benção, de perdão, de prece ...
E que, no entanto, é das que mais afligem ...
Entardecer ... O azul empalidece
como um rosto na agônica vertigem ...

Em breve a noite vai colher a messe
das estrelas ... E da cerúlea origem
a alma do vago sobre as almas desce
e as saudades para elas se dirigem ...

Morreu da luz o fulgurante império ...
O poente, como as ilusões perdidas,
os nossos sonhos vãos, se fez cinéreo ...

E sobre tantas ruínas, quando é noite,
virão chorar, nas horas esquecidas,
as cristalinas lágrimas da noite ...


José Lannes,

in Candeia

22 de nov. de 2012

TEMAS E VOLTAS



Mas para que
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?

Mas para que
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?

Mas para que
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?

Mas para que
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?

Manuel Bandeira

21 de nov. de 2012

NOITE SELVAGEM



Entro na selva. A noite é espessa. De centenas
de pirilampos toda a mata se ilumina;
astros movem no espaço as rútilas antenas,
como insetos de luz, numa etérea campina.

Ergo ao céu, desço à terra a assombrada retina,
e ante as luzes astrais e ante as luzes terrenas,
a terra e o céu, o céu e a terra, julgo, apenas,
um céu que se distende, alonga e indetermina.

Em cima há tanta luz que o olhar erguido pasma!
Cada estrela parece um luminoso miasma
a medrar, a fulgir da treva na espessura.

e a noite tão negra e tão ampla, e tão densa,
é um pântano infinito, uma lagoa imensa,
a decompor-se em luz, a efervescer na altura.


Gilka Machado

19 de nov. de 2012

ACORDANDO



Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta 
Este meu vão sofrer, esta agonia, 
Como sobe cantando a cotovia, 
Para o céu a minh’alma sobe e canta. 

Canta a luz, a alvorada, a estrela santa, 
Que ao mundo traz piedosa mais um dia... 
Canta o enlevo das cousas, a alegria 
Que as penetra de amor e as alevanta... 

Mas, de repente, um vento úmido e frio 
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio 
Me acorda. — A noite é negra e muda: a dor 

Cá vela, como d’antes, ao meu lado.. 
Os meus cantos de luz, anjo adorado, 
São sonho só, e sonho o meu amor! 


ANTERO DE QUENTAL 
In Sonetos

11 de nov. de 2012

PARA QUE VENHAM


Uma só vela basta. Sua luz mortiça
Uma atmosfera mais propícia há de compor,
Quando as sombras vierem, as sombras do amor.
Uma vela somente. Que esta noite o quarto
Muita luz não ostente. Entregue ao devaneio,
E às sugestões do ambiente, e dessa luz tão pouca
Ao devaneio assim entregue, hei de sonhar,
Para que as sombras venham, as sombras do amor.


Konstantinos Kaváfis 

10 de nov. de 2012

LUAR




De brejo em brejo,
os sapos avisam:
- A lua surgiu!...

No alto da noite
as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.

A lua madura
rola, desprendida, 
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo
da Via-Láctea?...

Desliza solta...

Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...

João Guimarães Rosa
In Magma

6 de nov. de 2012

PÓSTUMA



Noite fechada, lúgubre, sombria.
Céu escuro, tristíssimo, nevoento,
Relâmpagos, trovões, água, invernia
E vento e chuva, e chuva e muito vento!

Abro um pouco a janela, úmida e fria;
Quedo a ver e a escutar, por um momento
O rugido feroz da ventania
E o rasgar dos fuzis no firmamento.

Quero vê-la no céu... e o céu escuro!
E, sem temer que chova e o vento açoite,
Abro mais a janela... abro, e murmuro:


Ah! talvez acalmasse o meu tormento,
— Se eu pudesse chorar, como esta noite!
— Se eu pudesse gemer, corno este vento!

Raul Machado

4 de nov. de 2012

SONETO



Tivesse eu tua imóvel cintilância,
Estrela, não sozinho na infinita
Noite, a mirar, em longa vigilância –
Da natureza insone, ermo Eremita –
As águas móveis em seu mister santo,
Puro, de abluir humanos litorais,
Ou vendo o suave, recém-caído manto
Da neve sobre outeiros e aguaçais –
Não! mas ainda firme, ainda imutável
Sobre o peito da amada em floração,
Para sempre sentir seu pulso amável,
Desperto, sempre, em doce inquietação –
E o meigo, meigo sopro surpreender
E sempre assim viver – ou perecer.


John Keats