30 de abr. de 2015
Noite Apressada
Noite Apressada
Era uma noite apressada
depois de um dia tão lento.
Era uma rosa encarnada
aberta nesse momento.
Era uma boca fechada
sob a mordaça de um lenço.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!
Imensa, a casa perdida
no meio do vendaval;
imensa, a linha da vida
no seu desenho mortal;
imensa, na despedida,
a certeza do final.
Era uma haste inclinada
sob o capricho do vento.
Era a minh'alma, dobrada,
dentro do teu pensamento.
Era uma igreja assaltada,
mas que cheirava a incenso.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!
Imensa, a luz proibida
no centro da catedral;
imensa, a voz diluída
além do bem e do mal;
imensa, por toda a vida,
uma descrença total!
David Mourão-Ferreira,
in "À Guitarra e à Viola"
24 de abr. de 2015
Voz da Noite
Voz da Noite
(Helena Kolody)
O sol se apaga.
De mansinho,
a sombra cresce.
A voz da noite
diz, baixinho:
esquece... esquece...
22 de abr. de 2015
Noturno a Duas Vozes
Noturno a Duas Vozes
— Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?
— Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.
— Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre doutra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.
— Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.
— Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos,
e um rumor de água
vem no vento.
— Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.
— Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.
Eugénio de Andrade, in 'Poesia e Prosa [1940-1980]'
Desde a Aurora
Desde a Aurora
Como um sol de polpa escura
para levar à boca,
eis as mãos:
procuram-te desde o chão,
entre os veios do sono
e da memória procuram-te:
à vertigem do ar
abrem as portas:
vai entrar o vento ou o violento
aroma de uma candeia,
e subitamente a ferida
recomeça a sangrar:
é tempo de colher: a noite
iluminou-se bago a bago: vais surgir
para beber de um trago
como um grito contra o muro.
Sou eu, desde a aurora,
eu — a terra — que te procuro.
Eugénio de Andrade,
in "Obscuro Domínio"
Assinar:
Postagens (Atom)